segunda-feira, fevereiro 26, 2007

"Nova Escola"

Esse colégio - "Nova Escola" - se negou a matricular uma criança de 7 anos de idade com Síndrome de Down, o que o juiz da 23ª Vara Civil Criminal de São Paulo considerou como direito desse estabelecimento de ensino.

"Na grande mídia, deu-se pouco destaque, sendo a Folha de São Paulo (17 e 20/10/2006) e o Fantástico (22/10/06), algumas exceções. Talvez o circense período eleitoral tenha contribuído para a baixa repercussão de um caso grave de afronta ao direito fundamental à educação, à dignidade, à igualdade.

A Escola pretextou não estar preparada para lidar com a criança com síndrome de Down, fato candidamente aceito pelo juiz. Duas indagações: e se a criança tivesse deficiência visual ou auditiva, a escola estaria preparada? É possível haver preparação sem o atendimento e o contato com as diferenças inerentes à pessoa humana? As respostas possíveis são muitas e não serão aqui esgotadas. Todavia, é certo que pais, mães, educadores/as, conselheiros/as de direitos e tutelares, promotores/as e juizes/as só se preparam durante os processos de convivência educativo, administrativo e jurídico. Em outras palavras, é crível que a falta de convivência direta e indireta não resolve o problema da ausência de preparação alegado pela escola. Autêntico ciclo vicioso: se não há atendimento, não há preparação.
E, não tendo havido preparação, não pode haver atendimento!

A sentença proclama ser dever do Estado e não da iniciativa privada a obrigação pelo o atendimento especializado às pessoas com deficiência, compreensão fundada no artigo 208 - III da Constituição Federal (CF). E reconhece que 'os incisos I e II do artigo 209 da Constituição Federal fixam duas condições para ensino pela iniciativa privada: 'cumprimento das normas gerais da educação nacional' e a 'autorização e avaliação de qualidade pelo Poder Público'. Prossegue a sentença: 'isso não significa que as escolas da iniciativa privada estejam obrigadas a receber portadores de deficiência'. Para justificar-se, o juiz apresenta os três fundamentos: 'primeiro, porque o inciso III do artigo 208 alude a dever do Estado; segundo, porque diz preferencialmente, não obrigatoriamente; terceiro, a iniciativa privada não é obrigada a suprir eventuais carências do Estado'.

[...]

O juiz reforça sua convicção quando diz que 'é dever do Estado, não da iniciativa privada, a ser prestado preferencialmente na rede regular de ensino', o atendimento escolar-educacional a crianças e adolescentes com necessidades especiais. Vários outros artigos da LDB são citados, sempre em auxílio da argumentação exposta na sentença.

Exposto, brevemente, o entendimento judicial, cabe desenvolver qual a nossa visão e interpretação da legislação nacional e internacional - ambas, aliás, contrárias ao juiz da 23ª Vara Civil.

O artigo 2º da Convenção sobre os Direitos da Criança (1989), ratificada pelo Brasil, é taxativo quanto aos direitos das crianças e adolescentes, não se admitindo que 'impedimentos físicos, nascimento ou qualquer outra condição da criança, inclusive seus pais e mães sejam utilizados para negação de direito'. O artigo 23 vai além: estabelece que 'os Estados-partes reconhecem que criança portadora de deficiências físicas ou mentais deverá desfrutar de uma vida plena e decente em condições que garantam sua dignidade, favoreçam sua autonomia e facilitem sua participação ativa na comunidade'.

Parece óbvio, mas, é bom ressaltar que a comunidade escolar, e não somente ela, precisa se adequar às necessidades das crianças e adolescentes - e as necessidades destas são sempre especiais, pois pessoas com até 18 anos de idade 'gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade', conforme consta do artigo 3º do Estatuto da Criança e do Adolescente. Portanto, toda criança e adolescente necessita de cuidados especiais - algumas, ainda mais.

A Constituição e as leis dela derivadas (Estatuto da Criança e do Adolescente e a Lei de Diretrizes e de Bases da Educação - LDB) são garantidoras de direitos à infância e à adolescência, não permitindo, inclusive, qualquer modalidade de discriminação. Os artigos 205, 206, 208 e 209 da Constituição são exatos no proclamar a garantia do direito de uma criança com deficiência - no caso, com síndrome de Down - à matrícula e freqüência à escola, mesmo em estabelecimento de ensino privado.

Escola privada, no marco normativo brasileiro, é uma concessão pública; donde, deve respeitar e cumprir, integralmente, a legislação nacional. A base primeira para a afirmação é a Constituição, ao enunciar que a educação é um direito de todos e dever do Estado e da família, a ser promovido e incentivado com a colaboração da sociedade. Seu artigo 209 afirma que o 'ensino é livre à iniciativa privada, atendidas as seguintes condições: i) cumprimento das normas gerais da educação nacional; e a II) autorização e avaliação de qualidade pelo poder público. Já o artigo 208 assegura 'atendimento educacional especializado aos portadores de deficiência, preferencialmente na rede regular'.

Logo, a própria Constituição admite à iniciativa privada o atendimento educacional, que deve, logicamente, obedecer às normas da legislação. Isto implica reconhecer que a escola privada é parte integrante do sistema regular de ensino - do contrário, não estaria sob as mesmas exigências regulatórias. O atendimento em rede regular de ensino não é, como imagina a tal sentença, sinônimo excusivo de rede governamental: todas as escolas - privadas ou públicas - estão obrigadas ao cumprimento da determinação constitucional e da LDB.

[...]

O marco regulatório já tem mais de 16 anos - tempo suficiente para que processo de preparação tenha-se realizado, ou ao menos iniciado. É hora de os poderes públicos devotarem-se prioritariamente a esta monumental tarefa, porque a dignidade humana e o respeito às diferenças (cor, etnia, gênero, deficiê0ncia, orientação sexual) só se efetivam mediante a convivência. Do contrário, perpetua-se a cada dia a segregação."

(José Fernando da Silva & Alexandre Camanho de Assis)

José Fernando da Silve é presidente do Conanda (Conselho Nacional dos
Direitos da Criança e do Adolescente) e integrante da coordenação do Centro
de Cultura Luiz Freire.

Alexandre Camanho de Assis é procurador regional da
República.

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